Cinema, Crítica

O Coringa e seu inegável Eterno Retorno…

Vejam… Durante muito, o Coringa de Alan Moore para A Piada Mortal, considerado por muitos a HQ definitiva acerca da relação do personagem com o Batman. O conto de Moore é uma história de fundação para o personagem e se juntava a várias outras leituras que estabeleciam o personagem como o vilão definitivo, a contraparte tanto de Bruce Wayne e do próprio Batman: uma força incontrolável – e que ao mesmo tempo levantava dúvidas sobre a capacidade do cruzado embuçado de derrotá-lo.

Nas telas, o Coringa ganhou algumas leituras…

Na TV, César Romero e sua caricatura insana para o personagem na série do Batman da década de 1960 foi fundamental para o estabelecimento de uma lógica particular: a do palhaço alucinado e, mesmo louco, capaz de tirar gargalhadas por suas tiradas. Aquela era a lógica e esta dialogava com as HQs – estas reprimidas por um código de conduta que restringia os limites do personagem.

Mas tal código de conduta perderia o sentido com o fim dos anos 1970 e a renovação que se seguira com os anos 1980-1990…

É a partir daí que a imagem do Coringa começa a ser dissecada/construída em diferentes aventuras – desde A Piada Mortal (1988), de Alan Moore e Brian Bolland, passando por Morte em Família (1988-1989), de Jim Starlin e Jim Aparo, e chegando a Asilo Arkham (1989), de Grant Morrison e Dave McKean – que de certa maneira estabeleceram as fundações do personagem no período pós-Crise nas Infinitas Terras e estas se estabeleceram como que alinhadas com as premissas distópicas estabelecidas por Frank Miller para o Batman e seu principal adversário em O Cavaleiro das Trevas (1986).

É nesta transição pós-Crise que o Coringa assume suas facetas mais assustadoras e emerge como uma força dona de uma identidade multifacetada e, ao mesmo tempo, cativante – não sendo por acaso que o personagem dispute o coração dos fãs do Batman como uma de suas forças primordiais (algo que desagua de certa forma na visão proposta para o personagem por Scott Snyder em Morte da Família, arco de 2012 em que o Coringa ataca toda a bat-família buscando destroçá-la.

Algo que fica claro ao longo das décadas de aventuras do Batman contra seu maior inimigo é que ele, o Coringa, sempre volta. Seja caindo de um helicóptero, baleado fatalmente, preso no Arkham, desaparecendo nas águas ao redor de Gotham ou qualquer outro evento que o tire de cena, é certo que ele retornará para mais um embate.

Podemos dizer que o Coringa nas telas lida com a mesma dinâmica: um eterno retorno, como se cada uma de suas encarnações nas telas funcionasse como elementos em constante complementação/expansão: a loucura niilista do personagem em um filme se recombina com a resistência ao real e seus atores em outro. O Coringa sempre retorna em busca de uma nova chance.

Este me parece o ponto deste novo filme. O Coringa que lá está interpretado de modo brilhante por Joaquin Phoenix é impecável, mas distinto daquele de Heath Ledger ou o de Jack Nicholson: aqueles são outros Coringas que alimentam e emprestam algo a este último; outros Coringas, cada qual com suas peculiaridades, atribuindo sentidos ao mesmo sujeito.

O Coringa de Joaquin Phoenix não é menos potência que aquele de Heath Ledger ou Jack Nicholson: cada um desses intérpretes contribuíram para uma identidade fílmica do personagem. Porém, a interpretação de Phoenix para o longa de Todd Phillips lida com outros demônios: a gênese de Arthur Fleck no grande vilão que é o Coringa é um mergulho na psiquê de alguém que adoece ante o mundo, o real e este adoecer o faz implodir.

Fleck cai e ao levantar-se o faz como o Coringa. O personagem levanta tanto como ofensa quanto ofendido e quer a desforra. O enlouquecer de Fleck, demonstrado em diferentes cenas e que culmina com a gênese do Coringa, guarda profundas semelhanças com aquele do protótipo de gangster sem-nome que mergulha em uma piscina de reagentes químicos para escapar do Batman em A Piada Mortal de Alan Moore: temos uma dinâmica semelhante que nos envolve no adoecer de ambas as versões de um mesmo sujeito.

Por isso que a versão de Ledger é a de outra faceta para o mesmo palhaço; por isso que a de Nicholson dialoga com outra face do mesmo personagem – aquela espalhafatosa e cômica dos anos 1960 de modo mais evidente. O Coringa de Phoenix e Phillips nos apresentara uma grande história de fundação que nunca fora contada até aqui – seja nas telas ou nos quadrinhos.

O grande mérito deste Coringa de Phonix é que a tela ficou pequena para a explosão de emoções que nos envolve, forçando-nos a discutir o quão grandiosas foram diferentes personificações de um mesmo papel. Esta não é uma versão definitiva para o personagem, mas seu recomeço que recolhe elementos de todos que vieram antes dele.

Este é mais um dos muitos retornos de um vilão à espera de seu nemesis… Um retorno triunfal e peculiar; um sério retorno em um sério mundo, diga-se.

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“Dummy” do Portishead completa vinte e cinco anos urgente e viçoso como nunca…

Estou ficando velho… Verdade, estou. Não lembro quando ouvi Dummy do Portishead pela primeira vez: pra falar a verdade, creio ter começado a ouvir a banda em algum momento dos anos 1990 enquanto me enterrava nas noites de domingo vendo o que diabos o Fábio Massari tirava da cartola no Lado B MTV

Creio que foi Numb, mas juro não ter certeza. Só lembro da garotinha cantando junto com a Beth Gibbons e como aquilo era, ao mesmo tempo, estranho, moderno e desconfortavelmente lindo. O Portishead se tornou, a partir daquele instante, uma das minhas obsessões da segunda metade dos anos 1990: precisava ouvir/ver/ter tudo o que eles produziriam/produziram porque, bem… Porque sim!

Dummy é de 1994. Naquele ano, em Natal, no Rio Grande do Norte, ainda estávamos embalados pelas camisas de flanela do Grunge e que tais. Como expliquei, só viria a prestar atenção ao Portishead através dos vídeos que pescava no Lado B MTV sob a batuta do Fábio Massari. É provável que tenha ouvido o disco pela primeira vez entre 1997 e 1998: mas, naquele ano, já tínhamos em rotação o Portishead, segundo disco da banda de Madame Gibbons e sua trupe.

Portishead, o disco, é tão brilhante quanto Dummy, mas a urgência do primeiro se sobressai. Era jazzy, moderno, um salto à frente de seu tempo: não tínhamos idéia do que diabos era trip hop ou o quão a música eletrônica evoluiria a partir dali, mas aquele disco soturno, com uma capa azulada e que trazia o frame de um curta – To Kill a Dead Man, para ser mais exato – que a banda produzira para lançar o álbum, era tudo o que mais queríamos ouvir…

Dummy completa 25 anos. Incrível como aquele primeiro disco do Portishead envelheceu bem, mantendo todo seu viço e frescor. Parabéns a Beth Gibbons, Geoff Barrow e Adrian Utley por brindar-nos com um trabalho tão belo e consistente: vocês não têm a menor idéia de quantas noites e tragos foram acompanhadas por esta obra-prima que vocês puseram no mundo…

Ainda espero poder ter a companhia desta maravilha por mais outros vinte e cinco anos…

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O estranho vôo da distópica Bacurau.

Ok, é distopia sim…

Bacurau, longa de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles é uma distopia daquelas que reviram sua cabeça de um modo único, mas é também dessas que se enredam e enviesam esses nós chamados tradição e modernidade. Direi que o filme é um nó cego repleto de elementos que despontam da tela, nos interrogam sobre nosso lugar/ser atual e nos obriga à tomada de posição. E, antes, Bacurau não é um filme para que muitos compreendam suas camadas subtextuais, mas muitos o verão porque esperam muito da experiência que ele oferece.

Há um jogo em Bacurau. Sim, os vilões, os forasteiros, estão lá naquela comunidade no meio do nada do sertão nordestino para um jogo sanguinário: temos um grande battle royale ao ar livre em que os estrangeiros, ajudados po uns fulanos do sudeste, preencher seus vazios individuais com uma boa dose de ultraviolência.

Sim, amiguinhos: a laranja do titio Burguess é descascada para dar lugar ao suco psicodélico da trama orquestrada por Kleber e Juliano…

Cartaz de Bacurau de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.

Porém, neste caldeirão alucinante, os forasteiros e os sudestinos não contavam que uma comunidade nos rincões do sertão detêm e cultivam seus vínculos, sua identidade, seus valores… Bacurau, para além de uma distopia, versa sobre o tecido que nos une, que nos identifica e que nos leva à tomada de ação, do revide — como na sensacional de/referência a John Carpenter e seu Assalto à 13ª DP —  e não é obra do acaso que as reações de todos os personagens do longa sejam, ao mesmo tempo, violentas e de uma busca urgente pela autopreservação comunitária, vide a reação ao playboizinho prefeito da cidade onde a comunidade de Bacurau está inserida.

Por outro lado, é provável que você não tenha se dado conta, mas o pássaro que empresta seu nome ao filme, o tal bacurau, como bem cantou Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, aquele que encarnou a imagem deste nordeste que não se dobra, é uma ave de rapina que “pega, mata e come”: o povo de Bacurau entende que sua voracidade hiperindividual deriva, sim, daquela ave que observa, ronda e ataca/devora sua presa. É por isso que buraco que Lunga e seus parceiros cavam para a tocaia contra os forasteiros — e no qual “enterram” um dos prisioneiros — reflete este lugar que devora suas presas e que, sim, pega, mata e come.

A dinâmica da identidade de autopreservação comunitária se insurge ainda mais vigorosa quado dois dos tais forasteiros gamers deste PUBG de carne e osso ambientado em Bacurau resolvem partir para cima de um casal de anciãos… Sim, eles vêem o casal de curandeiros da comunidade como velhos prontos para o abate, mas, para surpresa de uma estupefata garota com os dedos reduzidos a nacos após ver a cabeça de seu companheiro explodir como uma melancia, o casal de velhos era uma dupla de trabucos fumegantes nas mãos: são bacamarteiros e não apenas moradores de uma comunidade dos rincões nordestinos, mas guardiões de uma tradição que se contrapõe a modernidade louca de seus jogos.

E é assim que Bacurau se transforma em um emaranhado de subtextos que, reunidos, mais que contar uma alegoria da resistência de uma comunidade contra o arbítrio, narra muito sobre os nossos dias e sobre o que nos aguarda em um futuro possível. Para os desavisado, uma das chaves que transformam qualquer distopia em uma “visão do possível” é a amplificação do real às raias do absurdo e do non-sense todas promovem.

Sim, Bacurau é uma distopia: daquelas que nos assombram, nos ensinam e nos previnem sobre o que está por vir.

Como já disseram, Bacurau é barra!

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Sobre a vertigem…

Confesso que tudo o que me resta por dentro após assistir o documentário Democracia em Vertigem da diretora Petra Costa é tão somente desprezo e o mais cristalino, frio e nada incômodo ódio. O longa desvenda muito o que estamos a sentir nas últimas semanas, mas, pior, revela que as razões para os que, iguais a mim, questionavam esta tragédia farsesca, compreendiam a verdade oculta que nos atormenta.

O ponto de partida do longa de Petra é preciso: a esperança…

Aquela esperança que a todos envolveu e que brotou quando eleição de Luis Inácio “Lula” da Silva em 2002; uma que nos conduzindo com materialização de alguns anseios nos primeiros mandatos; a mesma esperança que nos fez ver uma mulher eleita presidente pela primeira vez em um país machista, misógino e canalha como este.

Uma esperança que sucumbe à tristeza e decepção que minara, desestruturara e destituira Dilma Roussef da presidência em 2016. Em seu lugar, sentimos o asco contínuo pelo que é colocado ilusoriamente: um governo de homens brancos, velhos… Ascende, no lugar de quem fora eleita pelo povo, um governo originado por um “grande acordo nacional com o Supremo e tudo” que procurará reestabelecer a “tradição” desigual de um país desigual e autoritário.

O filme de Petra Costa é feliz por mostrar nossos descaminhos, nossa tristeza, nossas mazelas e a distância irreconciliável que ora nos separa: Democracia em Vertigem é feliz ao demonstrar que ainda estamos longe de qualquer diálogo ou conciliação porque quem poderia trazer tal conciliar está preso por ousar desafiar as dinâmicas que sempre serviram para nos identificar como país.

“O retrato da nossa queda e de como esta ainda não terminou” poderia ser o resumo deste documentário que nos supre com imagens e falas poderosas capazes de traduzir a tristeza que nos une e o incômodo silêncio que nos envolve.

Silêncio. Ele está presente em todo o filme. Petra Costa dosa este mesmo silêncio com uma fotografia arrebatadora e momentos que pedem este mesmo silêncio para que possamos entender o que se mudou em nosso seio. Democracia em Vertigem demorará a ser superado como a mais fiel tradução dos anos em que a desesperança nos solapou.

Parabéns a Petra Costa por nos mostrar que ainda temos um longo caminhoa percorrer.

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Um redesenho em curso: o Jornalismo não será o mesmo após a #VazaJato do The Intercept Brasil

Enquanto o The Intercept Brasil segue desnudando os bastidores da Republiqueta Bananeira de Curitiba, talvez devessemos atentar para o redesenho que as revelações que a equipe comandada por Glenn Greenwald vem promovendo no cerne da própria prática jornalística e nos fundamentos de uma deontologia da profissão por aqui.

Desde o domingo, quando liberou partes da grande reportagem que promete devassar as relacões espúrias mantidas pelo ex-juiz e atual ministro da Justiça Sérgio Moro, o procurador e coordenador da Operação Lava-Jato em Curitiba Deltan Dallagnol e membros da força-tarefa da mesma operação, o The Intercept Brasil recorre a diferentes fundamentos jornalísticos que, senão esquecidos, pairavam sobre uma névoa que ignorava sua existência.

Não só a questão do sigilo sobre tudo o que diga respeito às fontes das informações/denúncias publicadas pelo site, mas sobre os detalhes de como estas mesmas informações são apresentadas, seus detalhes, seu impacto e como este dialoga com o compromisso ético de informar com clareza, sem subterfúgios ou arestas.

Se a partir de domingo diferentes jornais, revistas e emissoras de rádio e televisão se desdobram para compreender o que proveu o The Intercept com o conteúdo sensível que ora tem sido revelado – criando culpados, sugerindo possibilidades ou mesmo adotando narrativas as mais non-sense -, a verdade é que a publicação tem se mostrado uma fortaleza na manutenção de seu protagonismo jornalístico e ético.

Ainda é cedo para afirmarmos os impactos que estas reportagens terão nos planos jurídico, político e social, mas o que tem sido mostrado e o que se apresenta como possível/passível de publicação pelo site aponta para um caminho sem volta.

Parabéns ao The Intercept: vocês são os donos da narrativa e, durante muito, esta sequência de eventos e publicações alimentarão os cursos de Jornalismo…

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Quando as “forças ocultas” agem e o resultado a História nos conta…

O governo – ou desgoverno – de Jair Bolsonaro baila bêbado à beira do abismo. Já sabíamos que assim seria, mas não imaginávamos que as nossas piores previsões se confirmariam em mirrados cinco meses. Não tivemos sequer um mês em que a turba de mentecaptos que conduz tal governo de néscios acertasse uma sequer: Bolsonaro conseguiu incendiar o país contra si e a prova está no sucesso das manifestações desta semana contra os cortes nas verbas para Universidades e Institutos Federais.

Milhares de “Idiotas Úteis” e “Imbecis” ganharam as ruas no dia 15 e mandaram um recado que desconcertaram tanto Bolsonaro quanto seus séquito de ineptos, desafiando o mito e reduzindo-o a uma maçaroca em completo desespero e despreparo.

Jair Messias Bolsonaro está nu em seu quinto mês com fortes indicações de que, sem um redesenho profundo e um trabalho de descontrução/contenção dos arroubos delirantes do presidente eleito, este regime terminará de forma não tão súbita como muitos poderiam imaginar, mas ainda assim supreendente: seja por força de um eventual e por hora hipotético processo de impeachment – motivado por deslizes do presidente ou por eventuais tentativas deste de intervir em casos que relacionassem eventualmente seus filhos em práticas nada louváveis – ou por sua capitulação pura e simples.

Não por acaso, depois do presidente distribuir entre os seus um artigo confuso que sugeria o país como que “sequestrado por corporações” e que forças obscuras conspirariam para transformar o Estado em algo ingovernável, as apostas que Bolsonaro poderia lançar mão das mesmas e confusas “forças ocultas” que conspiraram para que Jânio Quadros renunciasse em 1961 ganharam força.

Bolsonaro e Jânio Quadros guardam semelhanças intrigantes, mas esclarecedoras: como Jânio, Bolsonaro foi eleito por uma composição de partidos sem relevância – Jânio era independente; Bolsonaro usou o PSL como legenda -, coleciona desentendimentos com os poderes legislativo, detém uma notória inabilidade para contornar seus problemas e, como não poderia deixar de ser, rapidamente tem visto sua maioria desmoronando em praça pública.

O destino de Bolsonaro é um incógnita, verdade… Mas tão verdadeira quanto é a possibilidade de uma história relativamente recente repetir-se. Estas semelhanças entre o destino de Jânio Quadros e o atual cenário envolvendo Bolsonaro e os seus demonstra que a História, com capitular, é algo cíclica. Este redesenho de forças em curso aponta que o jogo em curso é também imprevisível…

Em todo caso, o vice de Bolsonaro está neste momento na China. Em 1961, estava João Goulart. O resto, claro, é História: uma já escrita; a outra em processo. Um processo, entretanto, bastante semelhante àquele experimentado por Jânio. Se Bolsonaro souber ler e interpretar algo da História verá que as tais “forças” que agiram sobre Jânio estavam tão somente na cabeça dele…

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Viva a morte!?

Cada banco de escola é um púlpito e cada escola um templo. Penso na história de Unamuno e sua resistência à intolerância e à ignorância. Vivemos isto agora neste país continental, diverso e múltiplo chamado Brasil. A estupidez parece ganhar corpo a cada fala de Bolsonaro; a cada movimento de seus asseclas para destruir ou retroceder conquistas.

A verdade é que estamos diante de uma travessia importante que nos redefinirá adiante. Talvez tenhamos a sorte daqueles que, como Unamuno, viram-se ceifados pela truculência e violência dos que querem o silêncio que concorda e o medo que nos enrijece, mas talvez esta seja a nossa sorte para estabelecermos um ponto.

Vejam… O mesmo país em estilhaços que acompanha o percurso do desmonte capitaneado por Bolsonaro e os seus também observa o crescimento de um sentimento de valor que até então tínhamos como perdido: as ruas foram tomadas há pouco por milhares de pessoas que se colocaram na luta pelo conhecimento e pelos templos onde estes estão verdadeiramente.

Esta é a mudança que se desenha. Talvez tenhamos que escutar um “Viva à Morte” em breve, mas, talvez mais provável, a reação que ora se esboça aponta para algo que muitos iguais davam como perdido: a capacidade dos nossos de perceber que não nos cabe ignorar, mas resistir ao assédio daqueles que buscam nos apagar desta equação elaborada, versátil e plural chamada Brasil.

Os que estão com Bolsonaro agora não compreendem o papel do povo nesta equação; não compreendem o lugar da diversidade de pessoais e idéias para a construção de um país maior; não compreendem o destino que nos espera para além deles. Este, nosso, é o da reconquista e esta não se dará no silêncio aquiescente, mas no concordar ensurdecedor de um novo pacto.

Bolsonaro está de mãos dadas à minoria que ainda grita, com outras palavras, algo próximo de um “Viva à Morte”… Mas passam longe do convencer, do persuadir: para tanto, Bolsonaro teria que pensar o Brasil e isto ele não poderá fazer.

Pensar é libertador; pensar nos move; pensar nos interpela a tomar partido e nos contrapor ao arbítrio.

Para nossa sorte, Bolsonaro está perdido e seguirá como tal rumo a seu ocaso.

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O retrocesso é logo ali dobrando a esquina…

Há a descrença e há o descrédito. É pensando nisso que vejo o governo de Jair Bolsonaro em um estranho e perfeito equilíbrioentre os dois termos. Atravessamos uma centena de dias até aqui e o que podemos afirmar é que o presidente da República e sua trupe de patetas orgulhosos têm nada a comemorar, celebrar ou o que quer que seja.

Jair Messias Bolsonaro deveria apostar em um bom banho de sal grosso mais que em uma chuva dourada para lidar os seus erros e desatinos que caracterizaram estes três meses estranhos.

Não devemos entrar na dinâmica do “avisamos, não!?” você dirá, mas apontar, explicar e demonstrar as contradições, hipocrisias e pirações coletivas que ora caracterizam Bolsonaro e trupe é um exercício inevitável – e dissecar a “piscina de chorume” que borbulha atualmente me parece algo que urge.

Não foram poucos os problemas e situações delirantes que Bolsonaro & Sua Turma produziram nesta centena interminável e hilariante de dias e, pelo que pudemos observar até aqui, a dinâmica em espiral de situações beirando o delírio não cessarão como mágica ou intervenção divina.

Não, não… O percurso que nos aguarda através dos diferentes Purgatórios (para os eleitores do sujeito) e Infernos (para aqueles que, como eu, percebem o atoleiro que surge no horizonte) indica que estamos entregues ao tipo de “sorte” que nos embalará enquanto atravessamos este percurso.

O Mundo não se contorce com Bolsonaro, mas nós sim. Não há como não se contorcer com a negação da História, a distorção do real, a falácia enquanto Estado da Arte e a mentira… Ah, a mentira. Ela é a grande arma de Jair e sua turma. A mentira repetida, redesenhada de modo a torcer, distender e buscar a reconfiguração do real.

Quando Bolsonaro e o chanceler Ernesto “Anauê” Araújo sugerem um “nazismo é de Esquerda” não o fazem porque desconheçam os livros – especialmente no Mein Kempf – que apontem o contrário, mas porque esta afirmação se contorce criando a atmosfera de propaganda ideal para o regime em curso – como disseram, o fantasma de Goebbels paira sobre a cabeça de Jair há muito.

O retrocesso é o redesenho que busca ofuscar a normalidade e Jair Bolsonaro e trupe entendem que esta pantomima fascista ofusca as atenções, desvia idéias e conduz seus adversários a um retesamento permanente que, mais que prejudicar o projeto daqueles que puxam suas cordas, termina por mantê-los continuamente nas sombras.

O retrocesso capitaneado por Jair Bolsonaro é a busca da normalidade delirante e permanentemente tensionada. Desmontar esta farsa depende de uma compreensão mais ampla dos atores até aqui dispostos e do esfaçelamento de suas idéias e valores.

Sem isso, restará somente a espera por um milagre e estes não caem das árvores…

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Os ecos de uma Rorô raiz na vibe dessa “Noite de Climão” da Letrux

Bem, é isso mesmo. Particularmente, ouço muito do Sampaio nessa Noite de Climão da Letícia Letrux. O disco, confesso, passou batido e só agora pude escutá-lo com a atenção devida. É delicioso além da conta. Não só pela poesia e sonoridade, mas pela ironia e diálogo que ela trava com a noite, com seus personagens e amores/desamores.

Poderosa, a moça sabe bem o terreno em que pisa. Lembra o veneno de uma Angela Rorô naqueles tempos que ficaram lá atrás entre o fim dos anos 1970 e primeira metade dos anos 1980: veneno, paixão e sabor na medida para despedaçar seu coração ou para inspirar uma noite de “pé na jaca” daqueles.

Canções como “Ninguém Perguntou por Você” e “Noite Estranha, Geral Sentiu” virariam fácil fácil companhia para algumas garrafas entornadas por este sujeito velho que escreve estas linhas. “Além de Cavalos”, por exemplo, é daquelas canções com a qual você certamente atravessaria uma pista de dança em direção ao bar – e não porque não seja excelente, mas porque sua bebida terá terminado e você precisa reabastecer.

Como disse, há Rorô de montão nessa Noite de Climão da Letrux. Há também o Sampaio moleque, inveterado, que se diverte com a poesia e as garrafas. Todos passeiam na boa pelos timbres impressos que elevam esse disco ao patamar das grandes belezuras destes tempos esquisitos.

Noite de Climão é o retrato de uma noite potencialmente massa, potencialmente troncha, mas uma noite para não esquecer e curtida a valer. Fazia tempo que não escutava um disco com uma vibe tão marcante.

Parabéns, moça: vamos tomar uma qualquer dia e jogar conversa fora…

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Um disco, um romance e a memória que Flaviola e o Bando do Sol reacendem

O romance tem nome: Romance do Lua Lua e dá nome tanto à música quanto ao album de 1983 de Amelinha. O disco, por sua vez, não é o de Amelinha, mas o homônimo de Flaviola e o Bando do Sol. Um disco que conheci recentemente através de uma reedição em vinil para o album a cargo do selo Mr. Bongo.

Originalmente o disco Flaviola e o Bando do Sol foi lançado em 1974 através do selo pernambucano Solar. O álbum é pura psicodelia pernambucana em seus melhores instantes. Canções como Desespêro e Do Amigo são exemplos da lirica que a banda empresta. Há as marcas do regionalismo, dos tons de um Nordeste que flertara com a experimentação, mas, sobretudo, no disco de estréia e único de Flaviola e o Bando do Sol, estas componentes se apresentam de forma única.

O disco é a representação de uma época em Recife: a da profusão musical da primeira metade dos anos 1970. O álbum Flaviola e o Bando do Sol surge no mesmo ano do primeiro do Ave Sangria e de Molhado de Suor de Alceu Valença, alguns do expoentes do Psicodelismo Pernambucano, com sua fusão do rock’n’roll psicodélico do final dos anos 1960 e a música popular nordestina.

Mas Flaviola e o Bando do Sol exacerba ao apresentar um álbum denso, lugúbre por vezes. O disco transita entre uma alegria confusa, difícil, um misto estranho de sentidos e, talvez por isso, termine por oferecer uma paisagem que nos conforta.

Daí que uma das duas canções que encerram esta obra indispensável para que compreendamos o impacto desta psicodelia pernambucana seja um romance, uma poesia de Federico Garcia Lorca retirada de seu Romancero Gitano: quando chegamos a Romance do Lua Lua estamos vencidos por este disco complexo em todas as suas cores, tomados por um frevo psicodélico dono de uma estranha beleza que nos envolve.

Talvez por isso tenha ido buscar na memória a versão de Amelinha para o mesmo romance: a lembrança permitindo descobrir algo novo e surpreendente.

A última faixa de Flaviola e o Bando do Sol, Asas (Prá Que Te Quero), fecha esta obra prima como que nos convidando a uma inevitável celebração à mudança. Trocar de almas, de asas…

Definitivamente este disco não tem paralelo e me estranha ter demorado tanto para descobrí-lo. Por aqui, desde sua chegada, rotação constante…

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